Por
Felipe Bottini e Silneiton Favero
A água é um recurso vital porque
os organismos vivos são inviáveis sem ela, ao passo que está presente, em maior
ou menor intensidade, em todo e qualquer processo produtivo. Não existe vida,
sociedade, economia nem cultura sem água. Por esse motivo, a água é um bem
público e, sendo também recurso e insumo, possui valor econômico, atributos
devidamente reconhecidos na legislação brasileira sobre recursos hídricos.
O desafio dos governos tem sido o
de gerenciar o atendimento aos diferentes usos em um quadro no qual a relativa
abundância de água no planeta não se traduz em disponibilidade e acesso
universal. O cenário atual é de demandas múltiplas e crescentes em função da
necessidade de produzir mais alimentos, bens, serviços e energia com reservas
de água ameaçadas pelo mau uso nas bacias hidrográficas e pelo comprometimento
dos ecossistemas locais. Ademais, apenas 3% de toda a reserva hídrica global
são de água doce, distribuída desigualmente entre os países e em suas regiões.
A cooperação entre os países para
a resolução dos desafios da gestão da água diante desse estado de coisas foi
discutida no International Annual UN-Water Conference (Saragoça,
Espanha, de 8 a
10 de janeiro), como parte das atividades do Ano Internacional de Cooperação
pela Água (2013). O UN-Water é um mecanismo interagencial que reúne os órgãos
das Nações Unidas com atuação nas questões relacionadas à água e ao saneamento.
Esses desafios referem-se, afinal, à segurança hídrica.
A segurança hídrica relaciona-se
diretamente com as seguranças alimentar e energética, interpondo questões
econômicas relevantes. Como compatibilizá-las é uma tarefa ainda em
progresso. Sabe-se que essa responsabilidade não pode e não
deve ficar unicamente com os governos. As empresas têm capacidade de
internalizar diversas ações relacionadas à conservação da água por meio de um
uso econômica e socialmente benéfico e ambientalmente sustentável - o Uso
Responsável da Água. Os consumidores podem inteirar-se da realidade da água e
buscar bens e serviços produzidos de maneira responsável.
Em essência, usar
responsavelmente a água significa cuidar daquilo que não nos pertence
individualmente e sim a todos indistintamente, enfatizando a responsabilidade
coletiva por esse bem público. O uso ambientalmente sustentável favorece a
biodiversidade e os processos ecológicos na escala da bacia hidrográfica. O uso
socialmente benéfico assegura benefícios de longo prazo, como os econômicos,
para a população local e a sociedade como um todo. Isso pressupõe que os
grandes usuários aceitem suas responsabilidades pelo gerenciamento sustentável
da água em sua cadeia de valor.
Muitas empresas têm utilizado
esta abordagem em suas políticas de sustentabilidade. Há exemplos de como
conseguir economias e eficiências financeiras melhorando a qualidade do uso da
água em toda a cadeia de produção, integrando a empresa aos esforços de
conservação dos ecossistemas e inserindo-as na governança da água de maneira
proativa. De seu turno, alguns governos nacionais criaram instâncias que cuidam
especificamente do uso responsável da água em seu território.
O Brasil tem uma legislação
avançada de gestão de recursos hídricos, com princípios, diretrizes e
instrumentos que visam a assegurar a disponibilidade de água para os usos
preponderantes nas bacias hidrográficas e a minimizar os conflitos pelo uso,
dentro de um sistema participativo de gestão e segundo padrões de qualidade
definidos em planos diretores de bacia. Ocorre que há um descompasso entre o
avanço legal e as capacidades reais para aplicar plenamente os instrumentos,
resultando uma consecução apenas relativa dos objetivos do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Todavia, o pioneirismo de alguns
agentes privados que reconheceram a importância da agenda da água para seus
negócios e para o equilíbrio ecológico não é ainda o bastante para a manutenção
do bem-estar e a conservação do recurso em escala global. Tampouco as ações
regulatórias em países como o Brasil estão produzindo plenos resultados.
Nesse cenário, o Uso Responsável
da Água vem se consolidando como abordagem de gestão privada alinhada às
prioridades de conservação ecossistêmica. Um padrão internacional de
certificação e verificação está sendo desenvolvido sob os auspícios da Aliança
Global pelo Uso Responsável da Água, que reúne instituições com destacada
atuação em conservação ambiental e gestão de recursos hídricos. Por meio desse
padrão as empresas obterão reconhecimento de mercado às suas práticas de
gestão. Está em fase final de preparação o protocolo da certificação,
prevendo-se que esta opere dentro de dois anos.
A abordagem de responsabilidade
coletiva trazida pelo Uso Responsável da Água vem para mudar a percepção ainda
comum de que o “que é de todos a ninguém pertence”. Trata-se de um estímulo de
alcance também econômico às empresas que verificadamente cumprirem a
agenda de conservação das águas e um desestímulo aos agentes privados que não a
promoverem.
O avanço dessa agenda e o seu
sucesso dependem de uma estrutura de incentivos adequada aos agentes privados,
o que implica ajustes nos marcos regulatórios e a criação de maior conhecimento
na sociedade e nas próprias empresas. Depende ainda do desenvolvimento de
conhecimento técnico para que seja possível medir de forma confiável as
contribuições para a recuperação da qualidade e quantidade dos serviços
ecossistêmicos relacionados à água.
Deve-se ressaltar que, do ponto
de vista da governança da água e da superação desses condicionantes, o Uso
Responsável da Água contribui para a resolução dos conflitos e para os esforços
de conservação nas bacias hidrográficas, justamente o que a legislação
brasileira de águas preconiza e do que a sociedade precisa para o seu
desenvolvimento. Repensar o uso da água na perspectiva da sustentabilidade é,
antes de tudo e mais nada, uma oportunidade.
Felipe
Bottini
é economista e sócio-fundador da Green
Domus Desenvolvimento Sustentável Ltda e da Neutralize Carbono
@neutralizeCO2. Consultor especial do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento.
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