No livro Tieta do Agreste, a Pastora de Cabras, do autor, Jorge Amado, conta um problema digno de análise: a instalação de uma fábrica altamente poluidora na praia de Mangue Seco, local paradisíaco e intocado. Os cidadãos das proximidades se dividem: para uns, a poluição virá, mas valerá a pena aproveitar os lucros que virão com ela. Afinal, o progresso é assim mesmo e bobo de quem ficar para trás. Para outros, nenhum dinheiro ou progresso paga o desastre ambiental e a perda da paz e da saúde.
Assim, temos dois tipos de pensamento em Agreste, cidade vizinha à praia: o imediato, dos primeiros, que enxergam apenas o linear e cartesiano (método criado por René Descartes que contribuiu com a Revolução Científica); e o sistêmico, dos segundos, que enxerga o todo e o futuro. A história se passa em 1966 e o pensamento sistêmico e a sustentabilidade ainda não eram palavras familiares nas empresas do Brasil. Atualmente, a mentalidade está começando a mudar. Será?
Alguns especialistas, como Aurélio L. Andrade e Paulo Vodianitskaia, acreditam que os esforços são poucos, mas existem. Já para os biólogos e consultores Gastão Octávio da Luz e Rosimery de Fátima Oliveira, nada leva a crer que o pensamento sistêmico esteja, de fato, tomando forma no mundo corporativo no Brasil ou no mundo.
O pensamento sistêmico, entretanto, vem antes da invenção do corporativismo. Andrade explica que o pensamento sistêmico, ou PS, surgiu da evolução do pensamento cartesiano, que, nos séculos passados, não conseguiu explicar satisfatoriamente fenômenos como a natureza da matéria e da luz, a termodinâmica e a evolução das espécies. "A visão cartesiana provocou crises de percepção na física, biologia, psicologia, sociologia, economia, religião e artes", afirma.
Para Luz, doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento e em Sustentabilidade, e Oliveira, especialista em Diagnóstico e Pensamento Sistêmico, pensar sistematicamente é pensar a realidade além do reducionismo mecanicista que começou a tomar conta do mundo nos séculos 16 e 17 (Revolução Científica) e 18 (Revolução Industrial). Segundo eles, essas revoluções levaram a civilização a ver a vida somente sob a ótica do racional, do científico e das especializações: "Pensar sistematicamente é buscar a ligação entre a Ciência (razão), Arte (sensação), Filosofia (sentimento) e Transcendência (intuição) - tudo está ligado a tudo, uma vez que a soma das partes nunca é igual ao todo, mas sim maior do que ele".
Vodianitskaia, professor de estratégia empresarial e consultor na área de sustentabilidade (empresa Hapi Consultoria), acrescenta que o pensamento sistêmico, enunciado pelo austríaco Ludwig von Bertalanffy há quase um século, significa interpretar algo em seu contexto mais amplo. "O pensamento sistêmico transcende a visão do ser humano como mera mercadoria, do mundo como mero mercado, do universo como mero mecanismo", diz. Segundo ele, Leonardo da Vinci, Goethe, Rudolf Steiner e Carl Gustav Jung são exemplos, entre outros, de pessoas que preferiram pensar e trabalhar sistemicamente, o que é perceptível em sua obra.
Pensamento sistêmico e mundo corporativo: Andrade, co-autor do livro Pensamento Sistêmico Caderno de Campo e co-fundador da Escola Brasileira do Pensamento Sistêmico (www.escolaps.com.br), em 2008 e, em 2012, do Instituto Sistêmico (www.sistemico.com.br), acredita que o pensamento cartesiano também não deu conta do advento do mundo corporativo.
Para ele, os novos tempos pedem flexibilidade, significado humano e sustentabilidade ecológica e social, ou seja, pedem o pensamento sistêmico. "O PS é a abordagem fundamental para 'pensar fora do quadrado', envolver inúmeras variáveis e conectá-las, transcendendo a visão tecnicista em direção a uma visão integrada de produção, economia, sociedade, cultura e ambiente natural.
É a abordagem que ajuda a adotar uma posição empática, de diálogo e de visão comum", afirma.
Luz e Oliveira, porém, não acreditam que o empresariado tenha atingido, em nenhum nível, o pensamento sistêmico: "É preciso rever o modelo macroeconômico e impor limites à máquina produtiva". Para os pesquisadores, apesar das crises (ambiental, social, econômica, política e de recursos – água e energia), as corporações não mostram sinais de mudança de paradigma: "As pessoas desejam mais emprego para mais consumir, o que garante o lucro do sistema produtivo, que exerce mais a depleção na natureza e mais polui, gerando um ciclo vicioso e insustentável".
Segundo eles, tanto o sistema financeiro quanto a máquina industrial-comercial não dão sinais efetivos do pensar sistêmico, a não ser na usurpação do discurso socioambientalmente correto e inteligente, com um marketing ambiental que ilude a crítica e perpetua a "insustentabilidade".
Assim, do ponto de vista sistêmico, crescimento e desenvolvimento não são a mesma coisa e, fora dele, "fica-se apenas com o discurso, a falácia que se vale do termo sustentabilidade".
Vodianitskaia, que atua no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), e na ABRAPS, a Associação Brasileira dos Profissionais de Sustentabilidade, admite que ainda é o pensamento linear mecanicista que predomina, no mundo todo, no primeiro e segundo setores da economia, ou seja, no governo e nas empresas. Entretanto, vê algumas iniciativas corporativas, mas poucas, e acredita que o pensamento sistêmico demorou várias décadas para transitar entre o mundo científico e o mundo corporativo, mas, a partir da consciência dos limites naturais há muito violados, algumas empresas passaram a considerar que a garantia de seu sucesso em longo prazo é trabalhar também para o sucesso do ecossistema e da sociedade em que estão inseridas.
Para o consultor, é crescente, embora pequeno, o número de líderes políticos e empresariais que pensam e agem de forma holística e estratégica para promover o desenvolvimento sustentável. E lembra um para ilustrar a crença de que uma empresa pode crescer e lucrar sem abrir mão da sustentabilidade e usando o pensamento sistêmico: a Interface Global, fabricante de carpetes modulares (ver box).
Enganos: A Interface é um exemplo muito celebrado, mas pouco imitado. Vodianitskaia afirma que empresas de todos os ramos de atividade, administradas para produzir a ficção de resultados extraordinários em curto prazo, continuam atentas unicamente à velha single bottom line (foco apesar no resultado imediato), negligenciando o desenvolvimento de seus funcionários, esmagando pequenos fornecedores, terceirizando a gestão de resíduos pós-consumo de seus produtos para a sociedade, e enganando clientes com greenwashing (maquiagem verde).
O destino dessas empresas, para o especialista, é funesto: "verão sua margem de manobra (e de lucros) minguar com o passar do tempo, sem ao menos entender por quê. Em um mundo interconectado por redes sociais, a condução antiética dos negócios será cada vez mais claramente percebida e punida."
Para o consultor, essas corporações desprezam a cooperação e seus frutos, manejando crescentes passivos ambientais e trabalhistas com dispendiosos serviços jurídicos, e não conseguem engajar seus funcionários na busca de maior eficiência porque são justamente os funcionários os primeiros a perceberem o logro que os vitima em primeiro lugar. E que um dos fatores que dá a essas empresas uma falsa sensação de segurança é o consumidor ainda não educado a um consumo consciente. "Executivos, em geral, ainda hesitam em ver suas empresas como organismos dentro de um sistema ambiental e social que as nutre e metaboliza o que fazem. Preferem vê-las como máquinas que impõem seus produtos à sociedade aliciada pelo bombardeio constante do marketing", diz.
Os biólogos Luz e Oliveira resumem desta forma: as empresas que adotassem a filosofia sistêmica perderiam, num primeiro momento, pois isso implicaria redução do produzir-consumir-descartar, até que se desenvolvessem outras matrizes energéticas e/ou fossem feitas revisões na produção de bens realmente necessários em detrimento da produção de supérfluos descartáveis. Porém, se o mundo corporativo não adota a filosofia sistêmica, todos perdem a qualidade (como já vem ocorrendo) e as próprias corporações perdem, a médio e longo prazos: "É uma questão de inteligência socioambiental que o capitalismo vigente não tem demonstrado possuir".
E Andrade define em uma frase: "Quem for sistêmico encontrará soluções e inovações criativas. Quem não for, adotará soluções superficiais e o resultado disso é apenas a postergação do próprio fim".
Cenário ideal: Andrade, entretanto, é otimista e acredita que, no futuro, organizações sistêmicas serão tão inovadoras que praticamente não serão mais organizações no sentido tradicional: "Não serão mais hierarquias, mas redes de produção e propriedade colaborativas que envolvem colaboradores, usuários e sociedade".
Para os pesquisadores Luz e Oliveira, uma empresa que adotasse o pensamento sistêmico provocaria uma revolução de paradigma ao deixar de confundir crescimento com desenvolvimento, ao promover a distinção entre o que é necessário e o que é supérfluo, ao favorecer as desconcentrações e a descentralização dos bens, da riqueza, em favor da universalização da qualidade de vida e, finalmente, ao ajudar a educar para outra relação sociedade-natureza.
E, para Vodianitskaia, as empresas que adotam, em algum grau, o pensamento sistêmico em sua governança, ganham limites mais elásticos de crescimento, lealdade dos clientes, atraem talentos e sabem cooperar em seu setor industrial e na sua cadeia de valor. Com isso, produzem situações em que todos ganham. Além disso, reduzem perdas, passivos e riscos porque o pensamento sistêmico favorece a abordagem interdisciplinar, vital para a gestão de sustentabilidade, cuja estratégia deve ser traçada a partir da ligação entre a empresa, o meio ambiente e a sociedade.
Esses resultados positivos, explica, não são mensuráveis somente em longo prazo, mas também pelo engajamento dos stakeholders, análise de materialidade e escolha de indicadores adequados, por exemplo, os propostos pela Global Reporting Initiative (GRI): "Evidentemente, de nada adianta incluir novos indicadores sem a gestão de metas desafiadoras e sem prover espaço para a inovação voltada à sustentabilidade", afirma. "Infelizmente, é o caso de muitas empresas que aderem a compromissos, como O Pacto Global da ONU, sem integrar à sua gestão quaisquer metas ligadas aos princípios desse pacto."
Vodianitskaia acredita que, hoje, é consenso que o ser humano destrói a vida mais rapidamente do que a natureza a pode criar e paga e pagará caro por isso; mas tem esperança de que as mudanças inesperadas nos sistemas ambiental e social, que a humanidade começa a perceber, pouco a pouco, transformem consumidores em experimentadores, que aprenderão a degustar o mundo sem consumi-lo: "Empresas que se prepararem, desde já, para um mercado de experiências tomarão o lugar daquelas aferradas ao mercado de consumo: mais software e menos hardware, porções menores de alimentos melhores, viagens em número menor, mas mais longas, mais reuso e menos matéria-prima virgem, mais integração da cadeia de valor e menos perdas, energia renovável sem desmatamento nem emissões poluentes e desestabilizadoras do clima."
Para Vodianitskaia, percebe-se melhor a adoção do pensamento sistêmico no terceiro setor, entre as ONGs e dos conflitos e dilemas entre o segundo e o terceiro setores, aparece como solução dialética um quarto setor, não direcionado somente ao lucro, mas principalmente ao benefício. "Esse novo setor está destinado a usufruir o maior nível de crescimento e uma insuperável geração de valor para seus stakeholders", diz.
Mesmo com essa esperança, Vodianitskaia crê que não há mais tempo para uma reformulação ordenada da educação formal ou da política no sentido do pensamento sistêmico: "A mudança dos padrões de comportamento atuais virá de fenômenos emergentes, rápidos, sistêmicos, como a mobilização social que se estende dos países árabes a Wall Street".
Realidade brasileira: Para Vodianitskaia, individualmente, o brasileiro comporta-se como quem valoriza mais as experiências relacionadas a relações pessoais ou com a natureza de que é parte, e não a alguma satisfação egoísta. Coletivamente, porém, muda a figura: o brasileiro comporta-se como se nada mais importasse além de sua satisfação imediata, buscando lucrar em curto prazo e em detrimento do futuro. "Consumimos irrefletidamente e, até na educação formal, aprendemos a pensar linearmente: ou penso o mundo como comerciante, ou biólogo, ou engenheiro. Em geral, não aprendemos sobre sustentabilidade em cada uma das disciplinas que cursamos".
Já Luz e Oliveira acreditam que esse pensamento egoísta e linear, como define Vodianitskaia, não é privilégio do povo brasileiro: "A questão deve ser analisada pela óptica civilizatória - o desempenho 'crescimentista' (em detrimento da 'desenvolvimentista') é planetária, globalizada e hegemônica".
Para ambos, os colapsos já estão na pauta dos acontecimentos e a necessidade é realizar mudanças profundas no modo de se viver no planeta, em lugar de se sobreviver do planeta: "O ser humano precisa deixar de ser um parasita para entrar numa relação de simbiose com a Terra".
Andrade não limita cultura a países, mas também não vê o mundo como uma cultura hegemônica, fazendo uma polarização entre cultura global e cultura ocidental/oriental. E brasileiros estão preparados, em termos cognitivos e culturais, mas pouco predispostos a adotar uma nova forma de pensar. "Nós somos, em termos empresariais, mais globais e ocidentais pela nossa origem europeia e americana de escolas de administração e economia", diz. "Temos o aparato cognitivo e cultural para pensar diferente, mas nossa sociedade é formatada pela visão cartesiana, analítica. Precisamos um reequilíbrio de ênfases. Buscar mais o sistêmico, o orgânico, o holístico."
Exemplos e tentativas
A Interface Global, empresa fabricante de carpetes modulados, foi fundada em 1974 por Ray Anderson, morto em agosto do ano passado, aos 77 anos. Anderson ainda é reverenciado por, em 1994, ter feito a empresa crescer, tornando-se líder do segmento, ao economizar milhões de dólares simplesmente coibindo o desperdício de água e energia. Sua fama como empreendedor sustentável, porém, vem de mais atitudes: aliando-se ao método TNS (The Natural Step ou O Passo Natural, em tradução livre), aos poucos, sua indústria passou a utilizar material orgânico e de PET reciclados em sua produção e ainda assumiu o compromisso de reduzir as emissões dos Gases do Efeito Estufa gerados pela Interface, que já está em 70%. As metas, em longo prazo, incluem a eliminação total dos desperdícios até 2020.
Em 1998, Anderson surpreendeu o mercado quando a InterfaceFLOR começou a entrar em contato com donos de carpetes antigos, até os não fornecidos por ela, para reciclá-los. E o ideal ia com ele para a casa: usava um automóvel híbrido e, em seus imóveis, energia solar. Deixou à Interface o objetivo de se tornar a primeira empresa do mundo totalmente sustentável.
Outro caso interessante é o Portal do Software Público Brasileiro, criado em abril de 2007 para compartilhar softwares de interesse público e tratar o software como um bem público. Cerca de 50 softwares gratuitos estão à disposição e qualquer pessoa pode se cadastrar e utilizá-los. Há softwares de gestão empresarial, de gestão de servidores de e-mail, de gerenciamento de instituições de ensino, bibliotecas, municípios, softwares de música, de atendimento ao público, etc.
Já a The Hub, fundada em São Paulo, em 2008, por Paulo Handl, existe em várias cidades do mundo (há Hub em Curitiba), e oferece, em sistema de trabalho colaborativo, um espaço para troca de ideias e lançamento de projetos e negócios voltados para melhorar o mundo. O conceito surgiu em 2005, na Inglaterra. Ali se reúnem empreendedores que pensam em sustentabilidade social, ambiental e corporativa. Para se inscrever, é necessário apresentar um projeto que será avaliado. O escritório oferece planos de pagamento para vários bolsos e necessidades.
Uma das empresas que trabalha na Hub Curitiba é a Terra Azul Consultoria, que oferece serviços de consultoria e assessoria técnica em gestão organizacional, otimização de processos e em desenvolvimento e meio ambiente. Em São Paulo, são membros da Hub empresas como Carbono Zero Courier, que faz serviços de entrega com bicicletas, Solstice Empreendedorismo, de consultoria de evolução sustentável para eco-empreendedores que desejam entrar no mercado brasileiro, e a Ecotece - Instituto do Vestir Consciente, que atua como agência de criação e conhecimento, formulação de projetos sociais e produtos ecológicos que geram renda e comunicam valores sustentáveis.
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Querendo ou não, as organizações praticam o pensamento sistêmico. É inevitável, uma criança de 5 anos o faz. A questão é paradoxal: esse pensamento sistêmico é limitado, focado na parte que interessa. Então, não seria sistêmico. É verdade! As pessoas não têm consciência de que seu "pensamento sistêmico" é limitado, findam por tomarem decisões lineares enquanto tentam repetir o que deu certo, sem pensar no novo. Acreditam que são sistêmicas! Ou seja, não expandem suas visões para enxergar sistemicamente o todo, focam apenas nas partes. No livro 123 aplicações práticas dos arquétipos sistêmicos da editora Senac-SP, Valença e os demais autores apresentam diversos exemplos de como enxergar sistemicamente a ação das organizações. Comentário completo em http://bit.ly/Jw1TOH
ResponderExcluirOlá Guilherme
ExcluirGrato pela sua contribuição! Para evoluirmos no conceito e na percepção do desenvolvimento sustentável, obrigatoriamente, antes de praticar o pensamento sistêmico, teremos que compreendê-lo!
Equipe Revista Geração Sustentável