Em um bairro de periferia, uma pequena confecção -– microempresa familiar - explora o trabalho de costureiras e lucra com os produtos vendidos a grandes varejistas que, por sua vez, lucram muito mais praticando preços bastante altos para o consumidor final.
Pode ser enredo de novela brasileira, mas, infelizmente, pode também ser real. E pode ser pior. Lançado em 2005, o documentário China Blue, não autorizado pelo governo chinês e exibido no Brasil no cinema e na TV paga, acompanha a vida de duas jovens chinesas que trabalham para uma fábrica de jeans no sudoeste da China. Elas são obrigadas a morar na fábrica, onde as condições são precárias (a água, por exemplo, tem que ser levada por baldes), têm carga horária massacrante, ganham menos de um dólar por dia e têm suas despesas (alimentação, etc.) descontadas do salário. Para cumprir um prazo de entrega, ficam noites sem dormir. Um "feitor" analisa o tempo todo o trabalho e multa quem ele acha que está fazendo "corpo mole".
A China, entretanto, não é a única. China Blue faz parte da trilogia Globalização, do diretor Micha Peled, cujo primeiro filme é Store Wars: When Wal-Mart Comes to Town, a respeito do conflito entre a rede Wal-Mart e uma pequena cidade na qual a ela acaba de implantar uma mega-store.
O terceiro filme, Bitter Seeds (ou Sementes Amargas, em tradução livre), estreia no Brasil no final deste mês. O documentário mostra, na Índia, a epidemia de suicídios - que já matou cerca de 250 mil pessoas - entre pequenos agricultores de algodão, obrigados a trabalhar com sementes geneticamente modificadas, com isso perdendo sua terra e seu sustento.
Segundo a Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção), os países asiáticos que mais vendem produtos têxteis para o Brasil são China, Índia, Indonésia, Taiwan e Bangladesh.
Todos são países sem democracia, ou com democracia fraca, população muito pobre e que, eventualmente, aparecem na mídia que denuncia o trabalho escravo. Ao contrário dos produtos nacionais, com os quais competem e que, ao menos no caso brasileiro, pagam uma carga tributária gigantesca, esses produtos chegam ao consumidor muito mais baratos.
Um barato que sairá caro, segundo o coordenador do Conselho Setorial da Indústria do Vestuário da Fiep (Federação das Indústrias do Estado do Paraná), Marcelo Surek. Para ele, o consumidor brasileiro precisa se conscientizar de que, ao adquirir esses importados, além de contribuir com uma indústria que não respeita os direitos humanos, nem o meio ambiente, está contribuindo para a desindustrialização do setor no Brasil, e o consequente prejuízo para o país e para si mesmo. "O que é mais caro? Sem indústrias, não há geração de emprego e de consumidores para outros mercados", declara.
Segundo Surek, a indústria têxtil e de confecção é a segunda maior geradora de empregos no Brasil (e, segundo o BNDES, a que tem o maior potencial gerador de empregos na indústria de transformação): a cada 10 milhões de reais por produto, são gerados cerca de mil empregos diretos e muitos mais indiretamente.
O coordenador afirma ainda que o problema do Brasil, entretanto, não é a China, mas o próprio Brasil e sua carga tributária altíssima: "O produto nacional sofre uma carga tributária em cascata, que incide sobre toda a cadeia produtiva e de comercialização. No final das contas, o lojista vende um produto do qual 45% do preço é imposto".
Diz ele que isso dificulta não somente a concorrência com os produtos importados, mas o desenvolvimento da indústria, pois, com a perda que o setor está sofrendo, não pode investir, por exemplo, na qualificação de mão de obra: "O Brasil não precisa de trabalho escravo para oferecer produtos acessíveis e de qualidade. Precisamos de isonomia, condições de competir de igual para igual, com impostos justos".
Brasil importou 4,6 bilhões de dólares em 2011
A Abit lançou, em janeiro, o importômetro: painel que mede as importações brasileiras de produtos têxteis relacionadas a quantos empregos deixaram de ser ofertados pelas empresas do setor no país. Segundo informações da Fiep, que apoia a iniciativa, o painel mostrou que, somente no primeiro mês deste ano, 60 mil postos de trabalho deixaram de ser gerados. Com o importômetro, a Abit lançou também uma campanha para colher um milhão de assinaturas e, com isso, pressionar o governo a adotar medidas eficazes para melhorar a competitividade da indústria têxtil brasileira. O formulário para assinatura, bem como o painel atualizado em tempo real, estão disponíveis no site da Abit http://www.abit.org.br/.
De acordo com dados levantados pelo departamento econômico da Fiep, o Brasil importou, em 2011, US$ 4,6 bilhões em produtos têxteis: aumento de 21% em relação a 2010. Somente o Paraná, no ano passado, importou US$ 181 milhões: aumento de 86% em relação ao ano anterior.
Para Surek e outros empresários das indústrias têxteis e confecções, a situação é grave: "Estamos à beira de uma desindustrialização do setor e o produtor brasileiro está vendo suas vendas diminuindo, muitas vezes, em até 70%. Alguns estão fechando as portas".
Segundo a área técnica da Abit, antes de 2005, praticamente não havia roupa importada da China no Brasil. Quem supria esse mercado eram as empresas nacionais, com roupa de excelente qualidade. Para a associação, a China corrompeu os valores de mercado porque, para produzir roupa barata, explora funcionários, contratando mão de obra escrava e infantil, empresta dinheiro aos seus exportadores sem cobrar juros, desrespeita todas as leis ambientais e mantém o câmbio forçadamente desvalorizado. Assim, a roupa pronta chinesa chega aqui custando menos que o empresário brasileiro pagaria só pelo tecido.
Além disso, aponta a área técnica da Abit, os produtos que entram no Brasil sofrem apenas a fiscalização tributária, ou seja, o consumidor não tem garantia nenhuma de qualidade e procedência. Ao contrário do que acontece com os produtos brasileiros, os importados não precisam se submeter a nenhum padrão ou controle de qualidade. Ao adquirir uma roupa da China ou de qualquer um dos países que praticam o mesmo tipo de produção, ele não sabe de onde vem a matéria-prima, em que condições e por quem é produzida.
Recentemente, a pedido dos empresários, o governo anunciou que irá fazer uma parceria com o INMETRO para que os fiscais do instituto possam entrar nos portos e fiscalizar, pelo menos, etiquetas.
Para Marcelo Surek, não há como fiscalizar os 70 portos brasileiros: "Com a arrecadação do governo, tecnicamente há condições para isso, mas o país não tem a estrutura necessária, não há como pensar em fiscalizar qualidade e procedência de produtos."
Trabalho escravo no Brasil: A terceirização nos serviços de costura para a indústria têxtil e de confecção acrescentou a informalidade ao setor, o que tornou as relações cliente/fornecedor muito importantes.
Nessa equação, onde se encaixa o trabalho escravo no Brasil? Os imigrantes de outros países sul-americanos, principalmente bolivianos e ilegais, que vêm ao Brasil para fugir de situações de miséria e não conhecem seus direitos, são alvo fácil para confecções que, a exemplo das encontradas em países de democracia fraca e pouco respeito a direitos humanos, buscam lucrar com o trabalho análogo ao escravo.
No ano passado, denúncias do Ministério do Trabalho, seguidas de processo pelo Ministério Público, contra a rede varejista Zara Brasil, trouxeram novamente essa questão à tona. A diretoria da rede se isentou de responsabilidade, dizendo que não sabia da procedência dos artigos que comercializa. Diante do processo, assinou com o Ministério Público do Trabalho e com o Ministério do Trabalho e Emprego - junto com a corporação à qual pertence, o grupo Inditex -, um Termo de Ajuste de Conduta. Em nota à imprensa, o Ministério comunicou que o termo visa a aperfeiçoar o controle sobre as confecções da indústria têxtil e garantir melhor qualidade de vida aos trabalhadores. Para pôr em prática várias ações com esse objetivo, a Zara Brasil fará um investimento social de R$ 3,4 milhões e criará um fundo de emergência para resolver eventuais situações de precariedade de trabalhadores. As empresas serão fiscalizadas e, caso não cumpram o compromisso, serão punidas.
Para contribuir com o controle desse tipo de problema, a ABVTEX (Associação Brasileira do Varejo Têxtil) mantém o Programa de Qualificação de Fornecedores, do qual são signatárias empresas como C&A, Grupo Pão de Açúcar, Marisa, Pernambucanas, Renner, Riachuelo, Wal-Mart, Grupo Gep e Leader, que representam, aproximadamente, 15% do varejo nacional de vestuário.
A C&A Modas informa que, além disso, criou, em 1996, a SOCAM, (Organização de Serviço para Gestão de Auditorias de Conformidade), empresa independente e internacional que realiza constantes vistorias em todos os fornecedores e subcontratados da rede, para buscar a melhoria das condições de trabalho, coibir qualquer tipo de mão de obra irregular e garantir um produto íntegro. A empresa foi, ainda, a primeira a assinar (e a mobilizar seus fornecedores a assinarem) o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil (http://www.pactonacional.com.br). O documento é uma iniciativa da sociedade civil que visa a implementar ferramentas para que o setor empresarial e a sociedade brasileira não comercializem produtos de fornecedores que usam trabalho escravo.
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Veja outros conteúdos dessa edição:
Matérias:
Capa: Pensamento Sistêmico e Visão Estratégica
Tecnologia & Sustentabilidade: Sustentabilidade comprovada em rótulo (Sustentax)
Responsabilidade Social: Pelo Futuro das Empresas
Empreendedorismo: Iniciativa de inclusão transforma a vida das pessoas por meio do empreendedorismo
Artigos:
Julianna Antunes: A sustentabilidade corportaiva ainda é uma escolha?
Daniella MacDowell: Quem é o profisisonal de sustentabilidade?
Jeronimo Mendes: O que é ser sustentável
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