Não é de hoje que constatações de falcatruas entre governos e ONGs são colocadas à sociedade. E este problema há muito já deveria estar sendo enfrentado de maneira mais rigorosa pelo poder público. Vertente do mais tradicional patrimonialismo brasileiro, a discussão reproduz uma conhecida forma de relação entre políticos, governos, empresas e organizações não governamentais, para um grotesco jogo de favores, demarcando uma lamentável característica deste país, desde a chegada dos portugueses. Mudam as formas de agir, mas permanecem os vícios de favorecimento aos agregados, atrelados a interesses inconfessáveis.
A crítica generalizada que estamos presenciando, se não é mal intencionada é, no mínimo, irresponsável. Mesmo em países como o Brasil, em que o papel da sociedade civil organizada, embora tão antiga quanto o próprio Estado (as Santas Casas são organizações do terceiro setor criadas no século XVI) ainda não é suficientemente entendido, apesar do flagrante o crescimento desta legítima opção de atuação, tanto no número de instituições (338.162, segundo IBGE-2008) quanto na diversidade de campos de atuação que são abertos e nos resultados que apresentam.
Via de regra, cidadãos comumente chamados de empreendedores sociais, lideram e participam da execução de ações permeadas de forte sentimento de interesse público, perseverança e inovação. Embora uma pesquisa realizada pelo IBGE/Ibope em 2010 demonstre que as ONGs atingem 64% de confiabilidade junto à população brasileira, elas ainda são pouco valorizadas pela sociedade.
Este grande esforço, que parte do conhecimento de assumir riscos de fazer diferente, de buscar resolver problemas a partir de um olhar deslocado, é que garante um mérito sem precedentes a estes muitos brasileiros que não se conformam com a condição medíocre com a qual são tratados nossos grandes dilemas sociais, muitos deles sem solução à vista e entremeados entre um poder público incapaz e uma iniciativa privada desinteressada.
Há estudos que demonstram que, em alguns países, há um crescimento proporcional maior de funcionários de ONGs do que em relação a governos e empresas. Também já é significativo o percentual do PIB nacional gerado pelas atividades do setor nesses países. Este é um sinal inquestionável do sucesso desta forma de realizar avanços. Para alguns, um fenômeno de tamanha influência é capaz de fazer algumas empresas de percepção mais aguçada a perseguir paulatinamente características de atuação destas organizações para não perderem seu espaço para a concorrência.
As ONGs, como todas as demais formas de organização da sociedade, não são uma estrutura incólume. E as inconsistências observadas nos contratos públicos são uma demonstração da fragilidade nos controles atualmente disponíveis. O combate a estas ilicitudes é uma condicionante mais do que evidente, mas nada mais prejudicial do que o uso de ações espúrias para atingir, levianamente, todo o universo da sociedade civil organizada.
Interessante notar que é absolutamente incomum ouvirmos na imprensa que uma empresa privada foi enganada e teve recursos usados de maneira indevida, a partir de uma parceria com uma ONG. Mais raro ainda, se alguma situação ilegal for identificada, que continue trabalhando com ela. No caso do poder público, há uma inadmissível recorrência de casos, o que denota uma condição de flexibilidade que não pode ser justificada em nenhuma hipótese.
Mesmo que situações assim não representem sequer uma ínfima parte no universo destas organizações, se governos acreditam que atuar em conjunto com o terceiro setor é uma maneira de fortalecer suas ações, devem ter a obrigação de controlar adequadamente qualquer tipo de atividade, como de sorte deve ocorrer em contratos com o setor privado.
O que não pode se admitir é a existência de uma tentativa, orquestrada ou não, de desmoralização de um enorme contingente de verdadeiros brasileiros que, como ninguém, lutam pela causa do bem comum e dedicam suas vidas para este fim. O terceiro setor, independente, crítico e inovador, representa um alicerce fundamental para uma evolução positiva de nossa sociedade.
Como disse Flávio Arns, ex-senador e atual vice-governador do Paraná e secretário de estado da educação "O povo brasileiro, antes de tudo, deveria agradecer às ONGs pelo papel relevante que tem assumido neste país".
Clóvis Borges é diretor-executivo da ONG curitibana Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS)
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